GLÓRIA AO ALMIRANTE NEGRO!
Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País. Hoje o rubro
lampejo da aurora acha irmãos, não tiranos hostis. Somos todos iguais!
Brasil, entre o crepúsculo do século dezenove e a alvorada do século vinte.
João Cândido Velho e Inácia Cândido Velho conheceram bem a escravidão e o suor
cotidiano do trabalho duro insistia em não reconhecer diferença entre presente e
passado; mas o filho deles, João Cândido Felisberto, nascera sob a sombra da liberdade
que abriu as asas sobre nós, porém ele não escaparia de sua herança.
Altivo como um lanceiro negro de lenço encarnado lá se ia o menino montando o
alazão pelas terras gaúchas da fazenda na vila da Encruzilhada. Negrinho do pastoreio
na lida com a boiada de guizos e fitas, guri pés na terra, vento nas ventas, olhos no
horizonte e cabeça nas embarcações que via flutuarem pelos rios levando arroz, trigo,
animais… Vagando… Navegando… Era a vida, árdua labuta vestida de sonho para
melhor ser cumprida.
Já rapazote, sem arreio que lhe coubesse e futuro que garantisse, seu fado foi ancorar
na Marinha. Destino este, aliás, de muitos dos desamparados pela tal liberdade alada.
Lutadores inglórios, piratas, farofeiros, cachaceiros, feiticeiros, os que não tinham a
dignidade de um mestre-sala serviriam para serem marinheiros. Entre alistamentos
desesperados, delegacias e casas de correção se recrutava a marujada, enquanto a boa
cepa das classes sociais superioras estrelava os cargos de chefia, altas patentes.
Hierarquia distintiva tradicionalmente mantida à força bruta. Maus-tratos e pagamento
vergonhoso aos marinheiros eram legitimados pela “casa grande”, sempre com sua
estimada chibata em punho. Convés era altar para o fetiche colonial que sangrava as
costas dos santos entre cantos e rufar de tambores em solenidade normalizada. Tronco
tocaiado de mastro. Porão de negreiro. Tatuagens da escravidão que marcavam as
carnes do pessoal do porão.
O tempo e o vento na capital federal fizeram o jovem João Cândido, habilidoso,
dedicado, carismático entre os parças e bem aceito pelos oficiais, tornar-se marinheiro
de primeira classe. A carreira militar o levou a singrar mares nunca dantes imaginados
pelo menino da fazenda: conheceu portos de vários países, navegou pela Amazônia e
até rompeu mata em luta armada na floresta pela expulsão dos bolivianos das terras
acreanas. Viajou a Inglaterra para acompanhar a construção e aprender o manejo dos
poderosos encouraçados ‘dreadnoughts’, batizados Minas Gerais e São Paulo,
encomendados pelo Brasil para reforçar o poder de fogo e valorizar a Armada.
Considerada por muitos uma ação deveras ostentosa num cenário sem guerra iminente
para enfrentar e com o quadro de praças tão debilitado. Lá assistiu com seus
companheiros uma reunião sindical pela primeira vez. Os ouvidos da marujada foram
semeados com histórias sobre greves, movimentos pela melhora da situação dos
marinheiros, a grande rebelião ocorrida no encouraçado russo Potemkin, que se
levantou contra a má alimentação a bordo. Sentiram soprar um vento fresco sobre seus
cascos cansados de humilhações ao saberem das conquistas de melhores condições e
tratamento pelos colegas estrangeiros. Com lições na bagagem e coragem no peito,
voltariam diferentes. Determinados a se levantar contra as injustiças sofridas.
Ao cruzar a linha do Equador no regresso à pátria, a bordo do Minas Gerais, com galões
de comandante nos punhos, João Cândido é aclamado deus Netuno pela guarnição na tradicional comemoração de retorno. Salve as sereias, baleias, tritões-marinheiros!
Salve o Netuno negro! Era o símbolo de uma aliança. Nascia um líder.
A insatisfação da marujada ficaria cada vez mais evidente, externada até, e o
movimento de insurreição foi tomando forma entre os porões dos navios e em
comitês. Rebelar era preciso.
Foi então que um acontecimento fez precipitar os planos. Uma ordem de aplicar duas
centenas e meia de chibatadas num marinheiro acusado pelo “crime” de levar cachaça
para o navio avermelhou as águas da Guanabara em um espetáculo de crueldade. O
sentimento de indignação, que há muito se represava, estourou e, como diz a famosa
canção de gesta moderna, o Dragão do Mar do Ceará reapareceu no bravo marinheiro
João Cândido em plena baía carioca. Naquela noite os toques de clarim do Minas
Gerais não pediram recolhimento e sim combate. Bradando “liberdade” e “abaixo a
chibata” os revoltosos travaram batalha contra os oficiais, rubras cascatas jorraram das
fardas brancas, e tomaram o controle. Líder da revolta, João, de lenço vermelho no
pescoço tal qual um lanceiro negro do Rio Grande, comandou as etapas. O Rio de
Janeiro, então capital da República, se deparou com navios de guerra dos mais
modernos e poderosos do mundo com os seus canhões direcionados para ele, de
bandeiras vermelhas hasteadas e exigindo o fim da fome e da chibata. Os estrondos
dos primeiros tiros de canhão tremeram a cidade. O recém-empossado presidente,
marechal Hermes da Fonseca, deixou o baile no Clube da Tijuca à toque caixa para o
Palácio do Catete onde recebeu o aviso vindo dos amotinados com suas reivindicações
e a ameaça de bombardeio a cidade e as embarcações que não aderiram ao
movimento em caso de recusa do governo. Foi um assombro tamanha audácia.
Pela manhã, a população se amontoou nas praias e morros para ver a movimentação
magistral dos imponentes Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro pela baía, a
maravilha daquele momento, mas a curiosidade logo cedeu assento para o desespero
quando mais alguns tiros de canhões de baixo calibre foram disparados para assustar
os governantes e provocou uma movimentação de fuga desesperada (dos mais
abastados) para a região serrana e (dos menos favorecidos) para os bairros do
subúrbio. Jornais e periódicos repercutiram a situação extraordinária mais alto que o
som dos disparos. Rapidamente fizeram famosa a figura do tão comentado “almirante
negro”, como o escritor João do Rio passou a chamá-lo no Gazeta de Notícias.
Depois de alguns dias de trapalhadas políticas frente a algo tão inusitado, o governo
cedeu e prometeu melhorar as condições de tratamento, trabalho, e extinguiu a
chibata do modus operandi da Marinha. O senado, apoiado pelo inflamado discurso de
Rui Barbosa, aprovou uma lei de anistia para os marinheiros revoltosos. Com essas
medidas as bandeiras vermelhas foram arriadas, os canhões se desarmaram. A
marujada conseguiu. O almirante negro venceu. Ninguém mais passaria fome.
Ninguém mais apanharia da chibata.
Só não contavam com a traição do marechal presidente em não cumprir o acordo de
anistia e mandar parte dos revoltosos para prisão e o restante para tenebrosa viagem
sem volta no navio Satélite. Jogado mais de uma dezena de companheiros numa
pequena cela insalubre na ilha das cobras, João os viu sucumbir envenenados pela cal
jogada no cárcere. Sobreviventes? Apenas ele e mais um. Mesmo com a saúde abalada
continuou preso. Agrilhoado às alucinações e pesadelos daquela câmara do terror,
devolveu ao mundo delicadeza bordando em velas-tecidos de esperança que
desfraldavam seu “amôr” e desejo de liberdade. A forte tormenta que atravessava o marinheiro o fez atracar no Hospital de Alienados na praia Vermelha. Diziam estar
louco aquele homem do mar.
Tempos depois, livre da fantasia da insanidade, sob o manto protetor da Irmandade da
Igreja Nossa Senhora do Rosário que providenciou sua defesa, foi julgado pelo
Conselho de Guerra. Finalmente absolvido, mas desligado da Marinha, continuou
sendo perseguido pelas autoridades. O grande chefe rebelde que garantiu a vitória da
revolta da esquadra passaria a ganhar a vida como pescador nas mesmas águas da baía
que foi palco de sua aventura, nas pedras pisadas do cais da Praça XV. O mar era seu
amigo, nunca deixou faltar.
Brasil, depois do século vinte e caminhando no século vinte e um.
João Cândido Felisberto conheceu a herança da escravidão, virou símbolo de luta
contra injustiças, de liderança. É saudado no povo. Cantado, versado, escrito,
representado, pintado, tatuado, homenageado em escolas de samba… Salve o
Almirante Negro! O maior herói da NOSSA pátria. O herói do povo. Erguido em bronze,
assentou praça de frente para a baía de Guanabara. Necessário monumento
amplificador de vozes contra a chibata que ainda insiste em ser acionada em nossa
sociedade atualmente.
Nós nem cremos que os escravos de outrora ainda sejam vistos e tratados como em tão
nobre País. Hoje o rubro lampejo da aurora não acha irmãos, mas tiranos hostis. Não
somos todos iguais!
Enquanto houver quem defenda ditaduras haverá uma chibata empunhada, afinal não
faz muito tempo…
Jack Vasconcelos
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Edwilson da Silva. Um herói, uma história, uma canção. O discurso poético e
os processos de significação em O mestre-sala dos mares, de João Bosco e Aldir Blanc.
Cadernos da FaEL. Nova Iguaçu/RJ, vol. 2, no 5, 2009.
BOMFIM, Flávia. O adeus do marujo. Rio de Janeiro: Pallas, 2022.
CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2021.
CHEUICHE, Alcy. João Cândido, o almirante negro. Porto Alegre/RS: L&PM, 2020.
GRANATO, Fernando. João Cândido / Fernando Granato. São Paulo: Selo Negro, 2010.
MAESTRI, Mário. Cisnes negros: uma história da revolta da Chibata. São Paulo:
Moderna, 2000.
MAESTRI FILHO, Mário José. 1910: a revolta dos marinheiros. São Paulo: Global, 1982.
MOREL, Edmar. A revolta da chibata / Edmar Morel; (organização Marco Morel). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2021.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na
armada imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
SILVA, Marcos Antonio. Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910. São Paulo:
Brasiliense, 1982.